Um pouco de história: Ippig, o guarda-redes revolucionário que sobrevive nas docas de Hamburgo

Matéria reproduzida na íntegra do site Futebol Magazine e escrita por Miguel Lourenço Pereira, publicada em 05/07/2012



Há poucos clubes tão associados com os ideais revolucionários como o St. Pauli alemão. Na cidade de Hamburgo, é a instituição que recolhe o apoio das minorias étnicas, sexuais e politicas, e o braço desportivo dos partidos militantes de esquerda. Foi também a casa de Volker Ippig, o guarda-redes radical que hoje sobrevive trabalhando nas docas de Hamburgo a descarregar contentores enquanto relembra o seu passado.


O revolucionário de Hamburgo
Não o faz só por gosto, mas Volker Ippig nunca foi um homem de desdenhar um trabalho por respeito a todos os que o praticam. Actualmente o ex-guarda-redes trabalha com clubes modestos do norte da Alemanha. Para complementar o salário mensal, durante a semana trabalha nas docas da cidade de Hamburgo, onde apesar de ser um de muitos, não deixa de ser um idolo para a maioria. Os imigrantes que se juntam aos autóctones podem não o conhecer nem lembrar-se de como era a vida na cidade nos anos 80. Mas os veteranos que conviveram com Ippig nunca se esquecem de lembrar-lhes que aquele homem que coxeia de uma perna, foi um dos maiores idolos da cidade.
Entre 1979 e 1991, Ippig foi o guarda-redes do St. Pauli.
Era a época de ouro de uma cidade que vivia a euforia do titulo alemão e europeu do Hamburg SV de Kevin Keegan e Felix Magath, orientado por Ernst Happel. Se o grande clube da cidade conquistava o país e a Europa, os homens de St. Pauli queriam conquistar o Mundo. Mas por muitos mais motivos que apenas os futebolisticos.
O clube sempre foi um nicho influente junto das comunidades minoritárias do norte da Alemanha. Foi a primeira instituição desportiva a criar uma claque exclusivamente homossexual. A primeira que defendeu o papel do futebol alemão na luta contra o racismo crescente no país nos anos 70 e também a integração das comunidades de emigrantes que tinham chegado de vários pontos do Mundo para viver o “milagre alemão”. Esse papel social ficou e sentia-se não só nos adeptos que apoiavam o clube. Era também o santo e senha dos próprios jogadores. Muitos eles eram militantes confessos de partidos de esquerda, mas nenhum teve um impacto politico e social tão significante como Ippig.


Abandonar o jogo para ajudar a comunidade

Durante a sua carreira no clube, Ippig interrompeu por três vezes a sua actividade como guarda-redes para envolver-se em projectos sociais. Em 1982 deixou o clube para tornar-se monitor de crianças orfãs com discapacidades motoras. Dois anos depois voltou a parar para abrir um centro espiritual numa quinta que adquiriu nos subúrbios de Hamburgo e onde se dedicava ao cultivo de productos macrobióticos e a recitar poesia revolucionária para quem o quisesse ouvir. A terceira retirada, e também a mais emblemática de todas, aconteceu em 1987 quando viajou até à Nicarágua para ajudar a reconstruir aldeias destruídas pelo exército governamental. Cada vez que voltava à cidade o clube readmitia-o de imediato e no primeiro jogo em casa era sempre o último jogador a subir ao relvado, punho bem alto, recebendo uma ovação dos adeptos que o tinham como idolo.
Mas Ippig era tudo menos o idolo de futebol habitual. No seu dia a dia jogava com as crianças do bairro nos parques, ajudava os idosos que viviam sozinhos levando-lhes comida e fazendo-lhes companhia pelas tardes e de noite, no pub do costume, trocava impressões politicas com os mesmos adeptos que pagavam o bilhete para o ver jogar no sábado seguinte. Não havia na cidade – e no futebol alemão – um jogador tão acarinhado pelos seus como ele. Em 1991, na ressaca da reunificação alemã – onde foi uma das vozes que avisou contra os problemas de discriminação que os cidadãos da RDA iriam encontrar na Alemanha Ocidental – sofreu uma lesão num treino que acabou com a sua carreira. Tinha apenas 29 anos. A partir daí iniciou um longo percurso como treinador de guarda-redes, primeiro no clube dos seus amores e depois em vários clubes do norte da Alemanha. Mas à medida que os anos passavam e o cinismo do futebol moderno deixava pouco espaço de manobra para idealistas resistentes como ele, as portas foram-se fechando e Ippig teve de voltar a trabalhar com as mãos, mas longe das redes que o fizeram famoso.
Aos 49 anos, o antigo ícone do St. Pauli confessa-se desiludido com o rumo que o clube tomou, mercantilizando até à exaustão a sua própria ideologia, tornando-se num símbolo cool da contra-cultura, tal e qual as camisolas com a imagem do seu ídolo de infância, Che Guevarra. Para ele, o espírito original que transformou o clube e a cidade numa caldeira de emoções que ferveu intensamente durante a década de 80 é uma longa e ténue lembrança que só a memória ajuda ainda a preservar.