Sankt Pauli

por Leonardo Panço

Não estabelecido desde 1910. Esse é o lema de um time de futebol que não segue exatamente a cartilha normal de torcedores, cronistas e o que mais se espera do mundo previsível do esporte bretão. Tendo como símbolo de sua fanática torcida um crânio e dois ossos cruzados, como a bandeira dos piratas dos sete mares, o Sankt Pauli, da área mais divertida da cidade de Hamburgo, onde fica a Reeperbahn [sim, era lá que os Beatles tocavam nos anos 60] e todos os clubes de striptease na noite da cidade mais animada da Alemanha (alguns diriam que o título fica com Berlim), não segue exatamente o que se espera de um time de futebol.

No caminho para o jogo que o time fará pela segunda divisão contra um time da Bavária, o Augsburg, muitos punks de moicano, vários skinheads de esquerda combinando suas jaquetas de couro com o cachecol marrom do clube ou as camisas pretas feitas pelos fãs. O aquecimento normalmente começa no bar Jolly Roger bem pertinho do clube para algumas cervejas antes da partida. Quando o time joga em casa às sextas à noite, a torcida chega mais animada, mas essa partida era em um domingo no estranho horário das duas da tarde. Mal dá tempo de descansar do almoço em família e as garrafas de meio litro vão sendo abertas.

O faz tudo do clube, Sven Brux, é quem dá as boas vindas da casa a dois ingleses, repórter e fotógrafo, que o entrevistam no mesmo Jolly, mas no sábado à noite. Na prática é um bar com muitos skinheads dançando ska, torcedores do clube e até mesmo adversários da partida do dia seguinte. Um grupo de fãs do Sankt Pauli comprou a parte de cima do prédio e fez um alojamento para quem vem de fora assistir a partida.

A profunda ligação do time com o Glasgow Celtic se confirma com a presença de dois escoceses que vieram somente para a partida. Talvez eles tenham conseguido ver alguma coisa no dia seguinte, porque nesta noite de sábado mal conseguiam ficar de pé.

Em 2008 aconteceu a quinta festa anual Celtic-St.Pauli no dia de um dos jogos do time alemão em Hamburgo. O clube tem uma intensa ligação com o movimento punk alemão, e porque não, mundial, com músicos e fãs em platéias de shows com as famosas camisas pretas do Sankt Pauli. O time de futebol de muitos das pessoas envolvidas na cena underground não só do país, mas de toda a Europa, é fortemente ligado aos squats, algo parecido com o Movimento dos Sem Teto brasileiro.

Ao ser o primeiro time a banir a extrema-direita de seu estádio, o Millerntor, o Sankt Pauli trouxe para suas fileiras nas arquibancadas muitos dos membros ativos da comunidade envolvida com o hardcore, com seu epicentro nos squats da Hafenstrasse, uma rua com quase todos os seus prédios invadidos e habitados por jovens desempregados vivendo do seguro social, ativistas vegetarianos ou vegan, músicos, produtores de shows, artistas. Até um goleiro do Sankt Pauli veio destas ocupações.

E foi com a ajuda destas pessoas que surgiram alguns movimentos para ajudar o clube, como o feito em 2002 por torcedores que montaram uma campanha para salvar o time, vendendo 140 mil camisas em apenas seis semanas com a palavra Retter (resgate) impressa.

A ligação com a equipe no campo musical pode ser identificada com as centenas de canções compostas em homenagem ao Sankt Pauli. Brux tem todas gravadas em sua casa. Em 2000 a famosa banda americana Bad Religion jogou uma partida beneficente contra o terceiro time da casa e Andrew Eldritch, do Sisters of Mercy, durante a turnê de sua banda em 2006, tocou com a camisa da torcida.

A mais recente foi a homenagem dos britânicos do Art Brut com o lema de todo punk que se preza (Punk Rock ist nicht tot – O Punk Rock não morreu). Impossível numerar todas as citações, inclusive na cena brasileira, onde músicos do Carbona, Agrotóxico, Confronto ou Jason usam a famosa caveira do clube em seus concertos.

Em 2005 o clube teve uma de suas temporadas mais especiais, senão a mais. Foi nela que o time fez sua pré-temporada em Cuba, afinal time de esquerda é time de esquerda. Os jogadores ficaram surpresos com a pouca qualidade da água e resolveram iniciar uma campanha de doações para os cubanos. "Viva com água de Sankt Pauli". Reza a lenda que agora a campanha já irá ser direcionada para a África (Nota: Não sei quando o artigo foi escrito, mas já existem vários projetos, alguns já executados e outros em andamento em diversos locais pelo mundo onde água potável é um problema sério).

Em seguida veio aquele que é possivelmente o maior dia da história da equipe com a vitória em casa em um Millerntor abarrotado por 3 a 1 sobre o poderoso Werder Bremen nas quartas-de-final da DFC Cup. Com esse resultado e a ida para a semifinal, o time arrecadou inimagináveis 1 milhão de dólares de direitos de transmissão, salvando-se da miséria por um bom tempo. Foram eliminados pelo Bayern Munich em seguida, mas a glória para a torcida já estava registrada.

Em uma pequena visita ao Youtube é possível achar os melhores momentos da partida e da festa depois do jogo com os jogadores em campo duelando nos gritos com os incandescentes torcedores. Não raro é possível ver alguns dos jogadores no Jolly Roger bebendo com os torcedores.

Ao redor do estádio todos bebem cerveja à espera do início do jogo em plena tranqüilidade, o que nem sempre acontece. Como a partida será contra um time da Bavária, a polícia, em pequeno número, libera a venda de cerveja dentro e fora do Millerntor. Mas nos dias contra os times do leste, como os das cidades de Rostock, Dresden, Erfurt ou Leipzig, nada de cevada para os jovens. Os confrontos nestes dias são maiores já que os times da antiga Alemanha Oriental têm muitos hooligans de direita em suas torcidas. Várias organizações antifa (antifascistas) aparecem e a polícia precisa trabalhar um pouco mais.

Os ingleses do dia anterior chegam descabelados e correndo faltando poucos minutos para o começo da partida. Esqueceram que o horário de verão acabou. Ian, o fotógrafo, ficará em campo e Craig na nova arquibancada ainda não finalizada e liberada para apenas mil pessoas nesta fase de testes, mas sequinha, sem lama, ao contrário da do outro lado completamente lotada. O Millerntor está em obras e terá capacidade para 27 mil pessoas ao final de 2008, dez mil a mais que atualmente.

O progresso infelizmente trará uma baixa para o charme que é ter um placar manual como nas divisões inferiores do campeonato carioca. A era digital fará mais um desempregado. A maior parte dos torcedores nesta nova parte da arquibancada atrás de um dos gols tem dreadlocks, tatuagens ou cabelos coloridos. Uma torcida feliz. Mas este lado será reservado no futuro para a torcida mais fiel, os "ultra", que viajam com o time, aqueles de carteirinha.

Definitivamente o Sankt Pauli não é um clube normal. No machista meio futebolístico, qual clube poderia ter um presidente gay se não o time da Reeperbahn? O ator Cornelius Littmann fala sobre o, pelo menos na teoria, inusitado fato de ser o comandante de um time de futebol. Corny tem 54 anos e cara de pouquíssimos amigos. Já respondeu várias vezes sobre isso, mas alguma vez para um jornalista brasileiro? "Não, nunca".

Ele acha que vários outros clubes europeus e sul-americanos têm presidentes gays, mas alguém precisava ser o primeiro a não estar no armário e que em algum momento outros virão à tona. Faz questão de ressaltar que é um homem bem sucedido nos negócios, com prêmios, administrador de dois teatros. Em pouco tempo ele consegue escapar e dá a deixa para encerrar um assunto com o qual não parece tão confortável. Isso não muda o fato de ele estar sendo o responsável pela ampliação e a completa reformulação do Millerntor.

Sven Brux fica bem perto do túnel com seu celular a postos. O time surge ao fundo e ele dá o aviso. Ordem dada, ecoa nos alto falantes do estádio os sinos da introdução de “Hell´s Bells”, dos australianos do AC/DC. Senha dada e se está novamente em uma partida normal de futebol. Papel picado como na Bombonera, gritos ensaiados e vaias contra o camisa sete adversário, o marrento Luz, que no ano passado era da casa.

O frio de quase zero grau inibe um pouco. Não é bom esquecer que a qualidade da partida faz juz à segunda divisão onde se encontram. Um belo gol de Ian Joy abre o placar para o Sankt Pauli e nova senha é dada. Nos alto-falantes agora soa aquela música do uhu. “Song 2” dos roqueiros ingleses do Blur. Guitarras em alto volume e cerveja na mão. É um show?

Craig pula com todos e pede para Ian o fotografar bebendo. Quer mostrar que a Alemanha não está tirando a diversão dos estádios, como a Inglaterra o fez. Lembra que aqui as pessoas podem ver o jogo em pé, se movimentando, que para ver o seu Arsenal, precisa ficar sentado por 90 minutos e sem beber. Culpa dos hooligans, mas que recai sobre todos.

No segundo tempo mais um uhu nas caixas. Björn Brunnemann sai do banco e faz 2 a 0 para o Sankt Pauli. Fim de jogo e os jogadores cumprimentam os três lados das arquibancadas e o quarto com as cadeiras. Saudados até pela pequena torcida bávara, eles saem de campo como os heróis das imortais caveiras e dos ossos cruzados que flanam por Hamburgo.



*Contribuição do nosso amigo Ricardo (Rikki), da comunidade St.Pauli Brasil no Orkut.